terça-feira, 24 de junho de 2014

Um estouro de fogo do Sol

O dia começou com um estouro de fogo de sol através da janela atingindo a cara cheia de ressaca de Spi. Ele tinha acordado às 11 da manhã, e iria evitar a qualquer custo os beijinhos na nuca de um mesário voluntário.

O cheiro de bunda suada invadia as narinas enquanto ele usava sua luva de Michael Jackson para
mexer no computador; ele quis dar uma trégua no facebook sifilítico e foi ver seu orkut, se alguém tinha deixado um depoimento pra ele. Ao entrar no decadente site, Spi viu que havia um recado para ele. Torcendo para que não fosse um desses html cheios de aids, ele foi ver do que se tratava, e percebeu que era uma oferta de serviços de prostituição. Por mais abandonada que estivesse a rede, o pessoal das putarias não sabia quando parar.

Denominado como "liberal transudo 100% sacanagem", o ofertante se apresentava a Spi como "liberal, dinâmico, inovador, esforçado, sabe mexer no Prezi" e oferecia "muitas safadezas" em um ambiente discreto, 24 horas, aceitando todos os cartões menos os de refeição. Não interessado, Spi estava prestes a deletar o recado, quando algo na foto de perfil lhe chamou a atenção. O sujeito estava pelado, de costas e enconstado com as mãos na parede, e na base das costas havia uma mancha com detalhes para os quais Spi precisou de visão além do alcance. A mancha curiosamente tinha a forma de uma senhora japa sendo esfaqueada por um pipoqueiro traficante.

Spi estava chocado, mal conseguia acreditar no que via, pois aquilo só podia significar uma coisa: aquele era seu filho, há muito tempo esquecido, Tamal Vadane, que ele teve com seu relacionamento mais longo, uma vez que esteve no Taiwan. Agora, o que Spi estava fazendo no Taiwan? Não se lembrava de nada importante que Mestre lhe havia mandado fazer por lá, nenhum motivo aparente, talvez ele fosse uma dessas pessoas que fazem o que dá na telha, talvez ele fosse imaturo, ou alguém que cria livre e mentalmente programas, histórias e itinerários, sendo provavelmente um grande boiola, e um irresponsável de merda. Mas irresponsável mesmo ele foi quando teve Tamal com a mulher e queria dar o nome de Daniel para a criança. Mas ela não quis, e então Spi disse: danem - se vocês, e os abandonou no Taiwan, para onde não se sabe por que ele foi, pra começar.
Ao rastrear o email fornecido no perfil, Spi viu que Tamal não estava no país nem no Taiwan, o que apagava as expectativas de descobrir o motivo daquela viagem distante... Seu filho estava em um terceiro mundo, e pra lá Spi foi, ainda assombrado pela lembrança turva e a descoberta de que seu único filho estava envolvido com ignomínias e perversões. O remorso lhe corroía por dentro; se foi por culpa do Serviço, ele o abandonaria para sempre, e se Tamal estivesse usando o sobrenome dele, iria matá - lo.

Spi chegou em uma cidade costeira daquele terceiro mundo, em uma praia na qual veios de lixo hospitalar escorriam mar adentro, e nas ruas as crianças brincavam de dar tiro umas nas outras com munição de verdade, uma fofura. Era um terceiro mundo próspero sem Estado, pois o Poder Executivo foi decapitado. Literalmente. Depois dessa, toda a população desenvolveu uma tara por decapitação. Até nas telenovelas, que cada capítulo tinha 9 horas de duração, tinha decapitações a rodo, na mesma quantidade que as novelas da Globo tem personagens que não sabem quem são os verdadeiros pais.

Haviam prostitutas que ostentavam dotes falsos fornecidos por roupas cretinas com gavetas, e perguntavam pros clientes a respeito de tópicos do universo de Senhor dos Anéis: "quem são os haradrim?", "Quem é o Madril?". Tudo o que as mulheres queriam eram aventura, mas a esmagadora maioria dos maridos, pelo que Spi constatou, eram alcóolatras que não estavam sóbrios nem quando acordavam, e propensos ao crime. E a aventura então era escapar de um esquartejamento.
Spi teve a infelicidade de entrar em contato com as milícias locais quando entrou em um bar arrebentado e impregnado de fumaça, procurando algo sem álcool para beber. O atendente disse que era impossível, pois até a água da torneira tinha álcool. E os milicianos arrastaram Spi para fora do estabelecimento, segurando - o sob mira de submetralhadoras, e para dentro de um carro suspeito.
Se livraram da arma dele e o levaram para uma mansão empoleirada na encosta bem hipster. Ele foi levado até um gabinete, com pornografia de aranhas por todos os lados, aranhas completamente nuas, onde foi recebido com uma voz ganiça que disse: "Ah, Spi... Finalmente você está aqui". O dono da voz se virou em sua cadeira oval giratória, que era uma escrotice, tal como colocar a marcha imperial como toque de celular.

Seu nome era Dândi Créu, magnata, um pigmeu que pertencia a uma máfia multinacional que controlava o comércio de álcool e prostituição, e que havia dominado aquele país por completo, e que ademais falava de seus conhecimentos irrelevantes, como nomes de músicas do Eminem ou o enredo completo de Madagascar 2. Dândi estava contentíssimo de seu plano ter dado certo, pois ele havia aspirado se tornar um vilão desses que tem planos complicadíssimos que dependem de probabilidades completamente aleatórias que dão certo porque sim. Porque se não, não teria história e ele morreria de fome esperando seu plano se concretizar.
Ele ofereceu para que Spi trabalhasse para ele. Spi perguntou 'como assim?', e ele respondeu que conhecia dos hábitos de promiscuidade de Spi, e tinha a prova viva disso. E mandou Tamal Vadane entrar.

Ele veio vestido com roupas indecentes, acompanhado de um gorila, mas não um gorila qualquer, era um gorila inteligente e simpático que falava, cor de caramelo e bigode de mulher. Ele que volta meia estava com uma baronesa dos Vingadores que queria porque queria bater na genitália dele com um bastão de tocar gongo. Uma vez ele fez saudações nazistas na rua e passou a noite na delegacia.
Se dizia quadrinista, enquanto o que ele fazia eram imitações medíocres de personagens famosos, sob medida para impressionáveis que pagam pau para coisas 'semidesconhecidas'. Ele tinha o Liefeld como referência suprema e emprego garantido na Júpiter 2.

Spi perdeu todo o sangue frio quando viu Tamal novamente; os testículos dele foram substituídos por bolas de sinuca, assim como seus olhos. Ele disse: "seus olhos morreram mas você vê mais do que eu; Daniel, você é uma estrela na cara do céu". Tamal Vadane respondeu: "você queria colocar meu nome de Daniel só pra dizer isso, né?" - e Spi disse: "não, é que eu acho bonito o nome" ... "mas, na verdade, foi sim" - finalmente cedendo.

"Minha mãe falou bastante de você. Ela me disse que quando ela te conheceu, você estava em uma missão para dar uma surra em usuários de próteses, que usavam muitas próteses, até de cabeça. Ela disse que era a forma curiosa pela qual você se referia a 'manequins'. Assim você se determinou a acabar com todos eles desde que os viu nas vitrines do centrão, sem roupas, e acreditou que não passavam de comunistas que orquestraram tal atentado ao pudor para subverter os valores da família. E era tudo freelancer; Mestre nunca tinha te autorizado para isso, ainda que você desviasse a estrutura do Serviço para esse fim. E muitos manequins encontraram o destino em suas mãos.

Na pista de uma etiqueta, vocês dois foram até o Taiwan para acabar com aqueles manequins miseráveis, e você já tinha a engravidado. Ela te avisou e você reagiu com um pouco de estranheza, mas continuou de boa. Mas então você abandonou nós dois por um motivo perfeitamente besta, sem amparo! Cresci sem nunca ter visto você! Passei a achar que você não passava de um filho da puta, mas minha mãe disse que eu nunca poderia falar algo assim de você, que eu lhe devia todo o respeito e que era um modelo de pessoa! A única que ela amou de verdade, e o único que falou em detalhes informações classificadas de 'somente para seus olhos' do Serviço Secreto, por amor! E então um dia os fabricantes de manequins decidiram se vingar indiretamente das depredações praticadas por Spi e envenenaram a comida dela o único dia que ela foi comer fora, aqueles infames, os odiosos maniqueístas!

Sem qualquer estrutura, passei a dormir ao relento e vender artesanato na praça. Coube a Dândi Créu me tirar da sarjeta e me colocar nesse trabalho! Começou com perversão de crianças, mais com o tempo se tornou mais fácil! Enfim, graças a você foi coagido a me prostituir, seu trolha!" - disse Tamal, com a dor não transparecendo por seus olhos não-uniformes de bola de bilhar, enquanto ele falava com uma viga de madeira na direção oposta a Spi. Spi o repreendeu com raiva: "filho meu tem educação e fala olhando pras pessoas!"

Aquilo era demais para a cabeça de Spi. Ele sempre tinha dado um jeito de fugir da culpa, de que essa memória permanecesse apagada. Agora ele sabia porque ia tanto em baladas do pessoal de artes de marketing, cheias de artifícios retardados bolados por moleques criados sozinhos pela avó, e dava vexame com "cupcake alcoolizado", pra acordar às 11 da manhã com muita roupa vomitada deixada de lado. Mas ele iria precisar reprimir as memórias de que esteve em um lugar cuja ideia de balada é servir cupcake com alguma outra coisa.

E agora Tamal Vadane, por mais requisitado que fosse, era o objeto sexual preferencial de um grande gorila, que tinha prerrogativas sobre ele. Spi esperava que fosse um namorado, mas por ser um gorila superinteligente talvez ele também tivesse assunto pra um churrasco de domingo.
"Então, agora que me certifiquei de que se trata realmente de você, Spi" - disse Dândi com sua boca enorme e obscena - "àquela oferta de trabalho. Queremos você como touro reprodutor".

Spi percebeu que a situação ia ladeira abaixo.

"Temos um problema grave aqui no nesse país."
"Pelo menos é só um..."

Dândi disse que justamente era a taxa de nascimentos negativa. Tudo indicava que a força reprodutiva da população se diluía entre o grave alcoolismo epidêmico e frequência a bordéis. Logo a população nativa deixaria de existir para dar lugar aos imigrantes e refugiados que já estavam à espreita para tomar conta do lugar, enquanto que as prostitutas perguntavam: quem são esses? E cabia a Spi, com seu jeito mulherengo, reverter esse quadro com as esposas daqueles que viviam caindo de bêbados.

Mas Spi via através das mentiras de Dândi. Não tinha déficit de natalidade nenhum em face dos imigrantes, a população crescia, tanto que as prostitutas estavam aceitando filhos como pagamento. E Dândi queria que Spi fosse só nas 'clarinhas', porque de 'escurinhos' já tinha bastante, e tava mais certo clarinhos que escurinhos. Era um projeto de ditadura fundada em ódio racial, mas se dissessem para Dândi se era isso que ele queria, ele iria responder que não, ele não tinha nada contra negros, que tinha muitos e o país era muito diverso e tal.Quanto a isso, Spi perguntou: "e por que isso te interessa, Dândi? Você é um comerciante, você não faz distinção, e quanto mais tiver pra você, melhor." - "Ah Spi, mas agora se preocupar apenas com lucro é coisa do passado! Agora é fair trade, preocupações sociais, ideologia! Não importa o que eu faça, foi o que eu escolhi para acreditar! Uma ideologia que quero acreditar!"

E se Spi aceitasse o cargo de touro reprodutor, de qualquer forma, o país ficaria cheio de Tamal Vadanezinhos, e se tornariam todos psicopatas que colocam o amiguinho amarrado com a cabeça nos trilhos do trem. Para Spi, autoconhecimento era tudo.
"Se eu recusar sua oferta?" - E os guardas apontaram as armas pra cabeça de Spi, e Dândi disse: "Então vou adiantar seu reencontro com a mãe de Tamal". Nesse instante Spi olhou para o filho, afetando completo desgosto apoiado no cangote do gorila, mas no fundo era apenas dor interior. Ali, ele estava na miséria.

"E se fizermos uma troca, Dândi? Você deixa Tamal Vadane ir embora com uma maleta cheia de dinheiro, e nunca mais tem contato com ele, nem você nem seus associados, e eu mesmo me torno a... namoradinha do gorila." - Dândi Créu escancarou a boca diante de tal sugestão. Ele hesitou por uns instantes, mas a proposta parecia péssima pra ele. "Se recusar, não precisa mais se preocupar porque não vou inseminar mulheres como você quer. Pode até me executar se quiser, porque não vou mesmo."

Dândi Créu cedeu diante do blefe, e libertou Tamal Vadane, por mais que o gorila protestasse raivosamente: "que porra é essa?" - lhe deram uma maleta de dinheiro e deixaram ele escolher uma criança chinesa de sua prefêrencia. Tamal escolheu uma gordinha e antes de sair da sala, se virou e gritou: "acha que pode me simplesmente comprar sua redenção desse jeito?! Nunca vou esquecer o sofrimento que me trouxe!"

E agora Spi pertencia a Dândi Créu. Ou mais especificamente, ao gorila. De sujeito de sexo, ele passou a ser objeto de sexo, internado na mansão. Nos intervalos de arregaçar Spi, o gorila trabalhava em suas criações em quadrinhos e voltava para mostrar os resultados a ele, que davam vontade de arrancar os próprios olhos. E a única comida que ele recebia eram rações de cupcake alcoolizado com pregos e rebites de recheio. Àquela altura, a morte seria uma misericórdia, mas Spi jurou que iria escapar um dia e rever Tamal Vadane, e finalmente corrigir suas falhas.

Na calada da noite, o gorila dormia abraçado apaixonadamente a Spi, que não conseguia dormir e tremia sem parar, só porque sua dignidade estava morta. Ele tentava olhar as manchas de vaselina na parede para se distrair, até o momento que o gorila se virou e libertou Spi. O mais sorrateiro que conseguiu, Spi deslizou para fora da cama e começou a revirar o bolo de roupas que o gorila deixou no chão. De repente, ele encontrou o que procurava, no interior de uma jaqueta de couro amassada: uma .22 carregada. Ele se aproximou da cama e encheu o gorila adormecido de tiros. Seus gritos de morte foram horríveis, eram quase humanos.

E foi só depois de matá - lo que Spi percebeu que não era um gorila, e sim um cara que parecia muito um gorila, muito mesmo. Então ele quebrou a janela com a coronha da arma, e correu para sua liberdade através dos jardins, após uma queda dolorosa do segundo andar.

E assim Dândi Créu perde Tamal e seu melhor cliente, e não conseguiu mais pagar suas dívidas, então seus sócios executaram ele e o enterraram numa cova rasa. E na primeira oportunidade, Tamal Vadane deixou a criança num cesto na frente de um puteiro.




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