domingo, 8 de maio de 2016

O Papiro Perdido do Egito

Tudo começou há muito tempo, em uma rodoviária. Era véspera de feriado e todo mundo queria descer a serra, ir para o litoral. Todos embarcados e acomodados, o ônibus deu a partida e deixou a rodoviária, passando pelos limites da cidade até ganhar a estrada.

Para alguns aquilo era só uma rotina, outros inventaram de viajar naquele dia mesmo. As cidades vizinhas do lugar de partida já tinham sido deixadas para trás, e agora na BR era vegetação para todos os lados, o autêntico inferno verde, que cobria todo um vale visível a partir de uma curva sinalizada como "perigosa".

De súbito a monotonia, ou o senso de normalidade da situação inteira, foi rompida pela desaceleração do ônibus, que logo parou no acostamento. Vários chiaram e bufaram irritados, já imaginando algum problema técnico que os faria esperar por outro ônibus.

Uma voz tomou conta do ônibus pelos alto-falantes: "Boa tarde, gente, tudo bem? Então, aqui é o motorista de vocês. Vocês podem até achar que estão indo pro litoral e tals, mas é aí que se enganam" - terminadas essas palavras, a incredulidade ia se convertendo em indignação entre os passageiros. O motorista continuou, elevando a voz para competir com os gritos e xingamentos: "estamos aqui na verdade para buscar o Papiro Perdido do Egito. Vai ser uma grande jornada, uma aventura como nenhuma outra. Essa relíquia milenar é a chave para o grande mistério da reprodução humana: parece que os bebês não vêm das cegonhas ou da plantações de batata, como muito se fala..."

Os passageiros da frente tentaram abrir a porta que dava para o motorista, mas descobriram que ele se trancou na cabine, colocando uma barra de metal para emperrar a porta!
Tentaram então freneticamente quebrar o vidro das portas, só para descobrir que era a prova de balas! A companhia de viação não dava nem água de cortesia para os passageiros da linha convencional, mas torravam dinheiro com vidro a prova de balas na cabine do motorista!

O coro de insultos corria de uma ponta a outra do ônibus! Um escarcéu dos horrores, os chiliques que não paravam!

O motorista viu então que, para deixar todos no clima de aventura, ele tinha que tocar a música. Ele assim fez, e ainda freava o ônibus no ritmo, para animar mais. O ônibus assim passou um bom trecho andando a 5km/h, e todos eram sacudidos no seus assentos pelo sacolejo do ônibus como se fossem bonecas de pano. "Mas é um filho da puta mesmo!" - gritou alguém. Ainda que estivessem no ritmo, não ouviam música nenhuma, pois o motorista tinha posto fones de ouvido no rádio.

O ônibus passou a seguir mais regularmente pelo caminho previsto, na sua busca pelo papiro egípcio. Os passageiros estavam bastante rancorosos com essa experiência; a expectativa deles era apenas que chegassem lá onde queriam sem grandes intercorrências, e o pouco que já tinha acontecido seria o bastante para passarem a viagem inteira pensando no quanto iam reclamar para a empresa, que iam entrar com processo, que iriam reclamar de tudo que aconteceu com amigos e família.

Agora só podiam esperar humildemente que a viagem prosseguisse normalmente dali pra frente, mas essa esperança já foi rompida quando o ônibus pegou um retorno. "Puta que o pariu!" - a revolta ganhava novamente os passageiros.
Ao invés de voltar todo o caminho já feito, o que todos meio que esperavam e que só os inflamaria ainda mais, o ônibus estacionou numa dessas vendas de "produtos coloniais". O motorista comunicou a eles que só estava ali para ver o seu "contato secreto" que iria lhe passar todas as informações necessárias para as condições da aventura. Seria interessante se lhe dissesse como ele iria para o Egito de ônibus.

O motorista desceu e foi encontrá-lo dentro da lanchonete, deixando todos os passageiros bem trancados dentro do ônibus, obrigando todos a fazerem fila para usarem o banheiro do ônibus.

Ninguém mais sabia o que dava para esperar daquele motorista desequilibrado. A viagem deveria ter seguido com toda a regularidade do mundo e agora aqueles viajantes de ônibus se encontravam sequestrados de uma realidade mais amigável.

O motorista tomou todo seu tempo e a cabo de uns quarenta minutos voltou ao seu lugar, anunciando a todos com a voz estranhamente arrastada que já dispunha das informações necessárias para encontrar o misterioso Papiro do Egito.

Novamente o paquidérmico veículo seguia sua rota mais ou menos prevista, mas dessa vez erros grosseiros de direção enfraqueciam ainda mais os nervos de todos a bordo. Buzinas protestavam enquanto o ônibus fechava as pistas e não se decidia se ficava na esquerda ou na direita.
Um passageiro cobrou satisfação: "Você bebeu por acaso?!"

"Senhor, o meu contato estava bebendo uma pinga artesanal super boa e sei lá, ia ser meio chato pra ele beber sozinho."
"Meu Deus do céu" - foi a resposta incrédula de alguém que perdia toda a fé que aquela viagem daria minimamente certo como a companhia prometia.
"Eu só queria voltar pra casa" - um estudante chorava baixinho, com os nervos bastante gastos de toda essa experiência.

Ainda assim, o motorista sentia que tinha um dever de manter o moral daqueles que lhe acompanhavam na busca do artefato antigo.
"Gente, vocês já pensaram? Apenas o destino uniu vocês para uma busca maior! É que nem Lost! Aliás, vocês sabem se tem no netflix? Não assisti nunca nenhum episódio, pra falar a verdade"

Alguém num assento da janela se levantou e gritou: "Cara, você podia ter ido buscar esse papiro por conta própria! A gente não tem nada a ver com isso!"

"Mas o que vocês acham que eu ia fazer no trabalho, além de dirigir? Eu ainda tô me descobrindo, eu preciso achar um sentido da minha vida..."

Um careca de camiseta polo azul bebê se levantou e disse: "Você só estava fazendo isso como fuga da sua realidade! Com os deveres que você tem com nós, passageiros, nós consumidores! Dirige essa porcaria que é pra isso que você serve! Saco..."

Depois dessa o motorista não falou mais nada. O ônibus desceu a serra com bastante tranquilidade, e com o motorista quieto, como se estivesse magoado. Alguns dos passageiros não queriam estragar a alegria de alguém, mas sentiram que foi necessário para assegurar a viagem corresse como esperavam.

Faltavam menos que 20 minutos para que o ônibus parasse na primeira parada planejada, e foi então que o motorista viu uma zona de beira de estrada, ao lado de um enorme outdoor que fazia publicidade de uma intragável bebida à base de maracujá.

O ônibus desacelerou e todo mundo protestou novamente: "Ah não velho!" "Qual é?!"

Ao que o motorista retrucou: "gente, o negócio é ir no puteiro, ficar olhando fixamente pras moças e aí voltar pra casa e bater uma bronha! Economiza uma grana assim!"

Todo mundo fez um escândalo equanto o ônibus se preparava para uma parada não-planejada no prostíbulo, mas aí o motorista não viu que tinha uma vala ao lado da estrada e o ônibus capotou.

Moral: Não dá pra reciclar papel higiênico todo cagado.