segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Abinoã - Hiperatividade Paranormal

Tudo começou há muito tempo, numa época em que Abinoã, o tigre que vomitava, não estava acostumado com visitas. Ele tinha começado sua vida como se estivesse no the sims 1, tinha feito a casa à sua imagem e semelhança, e agora tinha um computador com escrivaninha no lugar da tv - que deveria ser o fogo do lar - e do lado tinha um balde para ele dar uma vomitada. Sua toca de tigre havia sido projetada conforme seus mínimos caprichos, sem levar em conta a vinda de outras pessoas que não pertenciam àquele lugar. E agora estava bem claro que ia vir gente, se não estava antes.

Ele jurou que ia ser um membro produtivo da sociedade, e usar o computador para fins exclusivamente profissionais, e não para se bronhar furiosamente.
Enfim, ele tinha grandes objetivos em mente para a vida que se estendia diante dele, e nada iria ficar no caminho deles.

Mas então chegaram dois primos magrões, com quem ele não falava havia anos e anos. Eles disseram que queriam visitar, que é importante, família, tudo mais. Isso com certeza desafiava Abinoã, que estava com a geladeira vazia - ele só comprava comida quando dava na telha. Ainda tinha o pequeno detalhe da dieta vegetariana de Abinoã; o que tinha para servir para os infelizes era cenouras baby, que estavam zoadas devido ao fato que Abinoã não as comia inteiras, ele ficava roçando os dentes nelas, e elas ficavam emulsas de baba dentro da embalagem, onde ele as punha de volta sempre.
Tinha também um caroço de feijão e um ovo cozido frio.

Ele foi servir cafezinho, que veio metade da xícara com café moído dentro, sendo que o filtro de meia suja não deu muito certo.

A noite caiu e parecia que era hora deles irem embora. Mas não, começou como visita, daí virou "uns problemas que eles tinham que resolver", e que se prolongavam sem parar... até que eles praticamente moravam junto com Abinoã, não contribuindo nada em termos financeiros, claro.

Aquilo tudo era insustentável para Abinoã, que teve que desfazer a pilha de roupa que tornava intransponível o chão do banheiro. Ele podia, sei lá, chamar a polícia pra mandar eles embora, e resolver logo toda essa história. Mas Abinoã não era nada do tipo prático. Ele iria encontrar um modo muito idiossincrático e hiper elaborado de se livrar da presença deles... ele devia achar que isso aqui era a Disney, o otário.

Abinoã decidiu que ia fazer os dois acreditarem que a casa era mal-assombrada e espantá-los, para assim reafirmar seu domínio sobre aquele muquifo imundo que ele chamava de casa.

Ele investiu bastante em fios de nylon para fazer as coisas parecem que se mexiam sozinhas, mas aí ele teve a ideia de investir um monte de dinheiro em efeitos especiais de última geração, em que a realidade simulada mal se distinguia da realidade... real, que era a de verdade. E Abinoã ficou de cara como esse povo de efeitos especiais super fatura tudo, são uns vampiros gananciosos da porra, que cobram o olho da cara e ainda fazem um negócio muito pouco convincente; doeu muito no bolso o que ele teve que desembolsar, ele só esperava que fosse vingar.

Os dois magrões estavam dormindo no chão com um edredom cheio de manchas amarelas, e um deles, entre vigília e sono, sentia coceira no nariz, que logo foi aliviada com o toque, mas ele sentiu que o toque não era dele, mas de uma aparição! O berro que um dos primos de Abinoã foi de gelar o sangue dos mais valentes, e ainda assim, o sádico do Abinoã não ia parar de atormentá-los.

E eram portas de armário que batiam sem parar, colheres sendo arremessadas para todos os lados, para fora da embalagem melada de chandele, passos corridos entre o quarto e a cozinha deixavam os dois primos com os nervos a flor da pele, que seguravam a respiração só para  ouvir as correntes arrastadas em seguida - tendo em vista que a única coisa mais assustadora que fantasmas são fantasmas com déficit de atenção!

O reino de terror com alto orçamento finalmente afugentou os dois, que saíram da casa em disparada, com o cabelo branco e enlouquecidos! Vendo eles da porta, Abinoã deu uma risadinha sardônica de triunfo, o sacana.

Dias depois, quando Abinoã tava na rua, a casa dele foi tocada abaixo por um misterioso incêndio - que veio da parte elétrica, da qual ele não entendia nada, mas não foi menos misterioso de qualquer forma.

E a seguradora deu uma merreca aviltante pra ele; eles disseram que não podiam pagar mais porque o valor da casa despencou quando descobriram que ela estava assombrada, e ninguém ia querer comprar ela. E foi assim que Abinoã morreu na miséria.

Moral: Sempre chegue cedo para a aula.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Spi: Num passe de Trágica

Tudo começou há muito tempo, na época das mil e uma noites, em um palacete - modelado todo no formato da cabana do Shrek, porque seus moradores pensavam muito, demais, nos seus dois filhos pequenos: Indigarr e Kasmático, que foram criados apenas para fazerem rinhas entre si, e os pais chamavam um monte de gente pra ver e apostar - assim não precisando eles correrem atrás de emprego.

Sobre os dois guris velavam duas fadas madrinhas, mas fadas do sexo masculino, com direito a asinhas e sapatos pontudos. Eram Spi e Machado, dois integrantes do Povo do Farol Aceso - o qual nenhuma quantidade de blusas poderia disfarçar a sobressalência mamilar característica desse povo feérico.

Tanto Spi quanto Machado ficavam consternados de serem chamados de fadas. Achavam que a língua era muito discriminatória, e pensavam em alguma coisa que refletisse melhor a diversidade de gênero; já tentaram ser chamados de "fados", mas nunca pegou. Tentaram também aquela coisa lá dos xizes.

Contudo, era sempre a mesma a missão dessxs fadxs: proteger e cuidar com muita magia de crianças depressivas, A essa missão tinham de se doar corpo e alma, com uma disciplina férrea e infalível.
Indigarr estava deprimido porque isso era parte de um processo de final de infância e formação de personalidade, ao passo que Kasmático estava deprimido porque ele era o filho que o pai deles teve quando pulou a cerca com a empregada; quando a casa dele caiu, ele teve que se divorciar e se casar com a empregada, mas nem por isso deixou de tratar a mulher como empregada. Por conta desse nascimento não requisitado, ele odiava Kasmático e fazia questão de mostrar. Fora isso, Kasmático tinha uma asma ferrada, muito grave, que o tornava imprestável para as brincadeiras dessa idade, mas ele não tinha escolha senão servir pras rinhas, porque sabe-se lá o que lhe aconteceria se não servisse mais.

Toda a noite em que os moleques se deitavam apáticos por essa doença da alma, vinham as fadas e cantavam músicas New Age para eles e estimulavam a puberdade vindoura neles esfregando seus narizes de madeira nas partes íntimas deles - eles argumentavam que era um processo natural, e que fadas não tem idade, então não é pedofilia.

Em uma daquelas noites, enquanto cantavam, Spi fitava ferozmente Machado - alguma coisa nele o incomodava; às vezes Spi começava a elevar tanto o tom de voz que arriscava acordar a molecada, e cantava irresignadamente que "vinha do leme, vinha da vela, vinha do timão, vinha do cabrestante..." e outras coisas de Galinha Pintadinha.

Spi tentava atropelar o canto da outra fada, querendo aparecer mais, sempre, com uma frequência tal que isso já não podia mais passar despercebido.

Os dois voltavam perturbados cada qual para sua casa de cogumelo na floresta mágica do Povo do Farol Aceso assim que o sol raiava e as crianças precisavam colocar o uniforme e ir pra escola.
Spi tinha sua mulher o esperando em casa, e ele lutava para não beber um uísquinho ao chegar do trabalho, eram seis e meia da manhã. Sua mulher o perguntava se tinha algo o afligindo, mas Spi era impassível como a muralha da China.

Machado estava em cada um de seus pensamentos, ultimamente. Não fazia tanto tempo que trabalhavam juntos, e se davam bem; Spi sempre emprestava seus cds favoritos a ele, que os usava como encosto de copo. Entretanto, a convivência lhe colocava ideias estranhas na cabeça. Seu colega fada-madrinha, além de exercer a função, tinha um estacionamento, o mesmo no qual Spi rotineiramente estacionava seu carro, que chamava afetuosamente de Spi sobre Rodas. Parecia burrice que ele tivesse um carro se ele já tinha asinhas, mas o carro servia somente para ele arregaçar as prostitutas, que nem GTA - mas quando isso era trazido a tona ele lembrava que isso era antes de conhecer a patroa. Coitado, ele devia achar que alguém ia acreditar, da mesma forma que ele acreditava que ele pudesse pegar alguém que não fosse puta com o apelido que havia posto no carro e os adesivos nele, sem falar do que ele escutava enquanto dirigia.

Enfim, Machado tinha aquele terreno grande que conseguiu de herança, estacionava um monte de carros e ganhava uma baita renda com aquilo - ele nem precisava estar trabalhando, se não quisesse. Ele conseguiu estabilidade, estabilidade da alma - pra ele a única coisa que importava agora era procurar satisfação naquilo que o dinheiro pouco suado dele compra. Ele se tornou uma pessoa completamente medíocre, uma "pessoa bem séria", que só tem visões de mundo que não deem trabalho - afinal estabilidade era todo o fundamento daquele mundinho dele. Antes da estabilidade financeira não havia Adão, talvez nem Deus existisse.

Spi no entanto, ralou muito como fada-madrinha para conseguir a vida confortável que tinha, e pretendia ralar mais para comprar um barco - por isso que ele cantava aquelas músicas de leme e de vela. Um barco inútil, visto que Spi morava bem no interior, mas um barco que dá status, com o qual ele iria singrar os mares, e, lógico, entupir o instagram de fotos, com ele no convés com a genitália aparecendo, na esperança de que a dor de cotovelo fosse soberana. Desde muito sonhava Spi com o barco, principalmente com duplos sentidos ridículos de linguagem náutica, como "o amantilho, que o mantém suspenso, e o gaio que impede que o pau suba". Ele se identificava um monte com essa "cultura" de barco, até descobriu que o nome dele vinha da linguagem náutica: "A forma do Spi está optimizada para aproveitar a força do vento vindo de trás da embarcação provocando um movimento não laminar do vento sobre esta vela. A sua forma redonda característica quando enfunada pelo vento e as cores com que é decorado valei-lhe a designação de balão." []
E com aquelas canções náuticas Spi se tornaria tal como Melchior, o Inimigo Antigo, o Ser das Trevas, taturana, Holocausto Canibal - só ele poderia contrariar a canção de Ilúvatar e ser o mais soberbo e o mais querido. E Spi olhava com ganância na alma para Machado, ainda assim.

Nada faltava na vida de Spi, mas ele o deixava se sentindo mal na própria pele; Machado era muita coisa que Spi não era, ele tinha assuntos mais interessantes, as mulheres sempre pareceram gostar mais dele, tinha hábitos mais saudáveis, era faixa preta em um monte de artes marciais das quais Spi nunca tinha ouvido falar (ainda que fosse uma fada), tinha melhor gosto musical e o troço dele era gigantesco e deformado.  O troço de Spi era bem torto.

Talvez no barco Spi encontrasse resposta para suas aflições em face de Machado, que provavelmente nunca teria um barco, "medíocre do jeito que é". Certo que fonte imbecil de renda de Machado era só ter um terreno, nada edificante. Entretanto ele trabalhava como fada-madrinha, ainda que não precisasse, fazendo um serviço para a humanidade. Podia-se duvidar do quão medíocre ele poderia ser.

Ainda assim era Machado também a sucumbir a certas idiotices da cidade cheia de nudez; modismos bestas e novidades. Houve tempo na floresta do Povo do Farol Aceso em que comida era apenas comida, e havia um pouco menos de pretensão em seu comércio.
Ele levou seus sobrinhos, ainda na idade da inocência das fadas, os mamilos nem tão rígidos assim, para jantar fora, dizendo que eles precisavam experimentar aquele restaurante cubano novo que tinha aberto fazia poucas semana - falando isso de um jeito para parecer que eles moravam em uma cidade bem grande onde só retardados moram. Logo aqueles sobrinhos também se encaminhariam para achar aquilo super bacana, bacana além de qualquer medida.

Mas eles foram surpreendidos por Spi, que, realmente furioso, urrava e atirava uma dúzia de ovos cozidos neles.

O ataque deixaria uma cicatriz perpétua em Machado, mas por sorte ele não sofreu mais machucados porque os ovos estavam mal - cozidos; Spi não sabia cozinhar direito, e diziam que ele só queria se casar por causa disso. Os sobrinhos conseguiram se salvar, mas eles gritavam, desesperados, e choravam por suas mães.

Machado mal conseguia acreditar no que Spi tinha feito, Ele estava em choque. Humilhado na frente dos sobrinhos, ele jurou vingança.

E aí foi uma sucessão de retaliações: começaram a cavar trincheiras, troca de tiros, um atirou flechinhas no saco do outro. Aí passaram a colocar o nome do outro no Serasa.

Teve um dia em que Spi flagrou sua mulher em casa com o troço de Machado inteiro na boca. Spi ficou extremamente ressentido, todos aqueles anos e ele nunca ganhou um boquete. Para se vingar à altura, Spi tinha que transar com sua própria mulher também.
E ele decidiu fazer que nem os antigos romanos: ele ia meter nela com raiva, com violência, e quando terminasse ia virar de lado e beber uma garrafa inteira de vinho antes de dormir. Passou até a chamar a mulher de Eulália, porque soava mais romano.

Esse conflito seria a nova estabilidade, a nova constância da vida dos dois odiosos rivais - se presentearam com algo que nada poderia suprir, e só tinham a brindar com o fundamento de uma relação de noções imbecis e desnecessárias de um sobre o outro. Eulália já não queria mais continuar com Spi, e os dois se separaram. Spi até achou bom, assim podia dedicar mais tempo a tramar a derrota final de Machado.

No entanto, no mundo dos humanos, a asma de Kásmatico piorou muito, e eventualmente ele teve falência respiratória e morreu. Ao ver seu protegido sem vida, com os prantos da mãe sobre ele, Spi se perguntava se havia alguma coisa que ele havia deixado de fazer, se ele estava cuidando do guri como deveria. Não, ele dizia para si mesmo, foi fatalidade, a gente sabia que talvez ele não fosse longe, mas Spi se via sempre às voltas com a ideia de que a culpa era dele, ainda que não houvesse algo que ele pudesse ter feito, ele, o mais zeloso protetor.

Seja como fosse, agora ele era fada-madrinha sem nenhum protegido. Poderia haver outra criança depressiva que realmente precisasse de ajuda, mas ele próprio, nessa função, não sabia se era tão fácil assim. Talvez a consequência da perda de um protegido fosse uma morte pelo esquecimento. Não morreria que nem Kasmático, com sofrimento e com quem chorasse por ele, mas a vida na memória pouco consciente daquele moleque já havia começado a se desfazer - toda a significância que Spi poderia ter começaria a morrer, e logo ele iria junto.

E agora apenas o tempo dirá, se Spi conseguirá preservar a própria existência, e manter sua cruzada pessoal contra o escroto Machado.

Moral: o segredo da criatividade é esconder bem as fontes

Moral 2: o segredo de ser um filho da puta é ser um babaca.